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terça-feira, 31 de agosto de 2010

Ladrão de Galinhas

Muitos anos atrás, Olegário Magalhães, um político do interior de Pernambuco tentava sua reeleição. Adentrou o sertão, com uma pequena comitiva, visitando pequenos municípios e vilarejos. Num deles, caminhava por uma rua de terra batida e, ao passar por um casebre que nem porta tinha, resolveu se aproximar:    

- Ô de casa!
Nisso, veio à porta uma senhorinha e convidou-o a entrar. Ofereceu-lhe água. É o que tinha.
- Olegário Magalhães! - a mulher gritou - Traz uma cadeira pro doutor aqui sentar!
E, quando surgiu um menino de 10, 12 anos com um banquinho, o candidato virou-se então para ela, todo sorridente:
- A senhora fez uma homenagem? Esse é o nome do menino?
- Não, doutor, o nome dele é David. É que botaram esse apelido nele desde que começou a roubar galinha.

O político não sentou nem bebeu a água. Saiu pisando duro, deixando a senhorinha olhando sem entender lhufas.

Poesia Para Quem Aprecia - Parte XI - "Vem"

Vem, descansa de uma vez o meu olhar
Desfaz o nó que trago na garganta
Coloca cor na minha palidez
Vem, empresta o braço, me faz caminhar
Doma a agonia que se me agiganta
 
Vem, acalma essa minha voz aflita
Permita que eu imite como os tolos sonham
Atira ao longe a minha timidez
Vem, mata a saudade que hoje se infinita
Consinta que eu me sinta como os que amam
 
Vem, e me alegra como por encanto
Oferta paz, aplaca meus conflitos
Torna poesia a minha lucidez
Vem, cura meu peito, cala o meu pranto
Traga seus olhos que são tão benditos

Vem, sepulta finalmente meus pesares
Deixa o sorriso alimentar-me a alma
Exiba um pouco sua formidez
Vem, no amor que sinto não há apesares
Toca meu rosto, passa a sua calma

Vem, derrama esperança em minha vida
Ensina ao luar como se faz brilhar
Põe melodia na minha surdez
Vem, não sei medir o quanto me é querida
Está perdendo tempo enquanto não me amar.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

O Pequeno Ladrão

Introdução

Faça o seguinte: Pegue um punhado de feijão. Depois, pegue a tampa de um pote de um cosmético da sua mãe. Mas, atenção, a tampa tem de ser cilíndrica e fácil de cortar, tipo tampa de desodorante (Só que tem de ser mais fina e menor). Pegue uma faca de pão e corte o fundo da tampa. Não peça ajuda para o seu pai, porque ele vai lhe dar uma bronca daquelas. Cuidado para não cortar os dedos. Dói pra cacete! Aí arrume uma bexiga ou balão de aniversário. Dê um jeito de fazer a tampa entrar na boca da bexiga. Pronto, Coloque um feijão dentro da bexiga. Segure pela tampa e puxe, puxe, puxe a bexiga. Mire no seu irmão e solte a mão que está puxando a bexiga. Viu que porrada?

Agora faça várias peças iguais a esta. Sua mãe vai ficar um pouco brava, mas mãe é mãe, né?
Reúna a molecada. Divida em 2 grupos. Distribua uma para cada moleque, e comecem a guerrear.Vale assim: O moleque que receber uma feijãozada sai da brincadeira. Vence o time em que restar pelo menos 1 moleque sem mancha roxa. É legal que nem paintball e não faz aquela melequeira. Só não pode convidar criança muito pequena, porque ela vai chorar e correr contar pra mãe.                                   
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- Chispa daqui! - gritou o velho empunhando ameaçadoramente uma vassoura.
Ágil, o garoto desapareceu entre as gôndolas da pequena mercearia e ganhou a rua.
- Ladrãozinho de uma figa! - continuou ele - Se é possível?!
Dona Mara dos fundos ver com quem o marido ralhava:
- O tal pirralho! Já é a quinta vez. - desabafou-lhe - Qualquer hora faço uma desgraça!
- É só uma criança... - ela ponderou - e o seu coração...o médico disse...
- Criança?? Aquilo é um rato, um...
- Tenha calma, homem. Olha, me diga quem é a mãe do menino e com jeitinho a gente resolve esta bobagem.
- E eu sei lá quem é a mãe dele? Se é que tem mãe, aquela praga!
- Manoel, Manoel, Nós conhecemos a cidade inteira. Quarenta anos atrás deste balcão...se eu já tivesse visto o menino aposto que saberia quem é.
- Isto é você, dona esperta. Eu só sei que o danado vive me roubando!
- Por curiosidade, o que ele vive roubando? - disse ela segurando o riso.
- Depende...elástico para papel, garrafa de vinagre, grampo de cabelo...isso quando dá pra ver.
- Elástico? Vinagre? Grampo? - ela estranhou - Tem certeza, Manoel?
Não só tinha certeza, como sabia que aqueles itens eram componentes essenciais para se construir uma arma infalível para caçar passarinhos: o vinagre, não o líquido inútil, mas a tampa plástica da garrafa de marca específica, a única com formato ideal; os grampos, abertos em “v”; o elástico esticado para o disparo...ele foi relembrando sua infância, a técnica de caça...sua técnica. Se Dona Mara tivesse lhe dado filhos ele certamente teria podido transmitir suas experiências, suas descobertas, mas agora surgira aquele bandidinho para subtrair-lhe mais que mercadorias, a sua própria invenção...



As visitas furtivas do menino teriam prosseguido por mais dois ou três anos, porquanto nutrisse a paixão por caçar, mas ele as interrompeu desde o dia em que sua mãe, num estado de desconsolo que ele jamais tinha visto, o levara a um velório limitando-se a dizer que haviam perdido alguém muito especial, que passara a vida inteira sem saber que tinha uma filha e um neto. E foi quando Dona Mara, debruçada sobre o caixão do marido, conheceu o menino sem saber que se tratava do pequeno ladrão.

O Pedreiro

Encontrei-o sentado, na poltrona reservada ao cigarro após as refeições. Continuava fumando o Continental, agora só fabricado com filtro, o qual desde então arrancava. Olhos esquecidos num quadro de parede, com a perna direita estirada sobre um banquinho, contingenciando o incômodo causado pelo tornozelo que teimava em inchar. Uma figura rude, como o pedreiro que sempre fora e, entretanto sereno, bonito até.

Ele notou minha presença e abriu um sorriso carinhoso, sem conter um tossir rouco, pigarreado. Abracei-o e ele retribuiu, contudo, sem a mesma força com que fazia quando eu tinha 4 ou 5 anos - era o tal “abraço de alicate”, brincava. Mas continuava um homenzarrão, de pele rosada, os cabelos lisos agora muito brancos, queixo com covinha e pesados óculos de lentes esverdeadas.

Dentre várias, erguera com as próprias mãos a casa na qual morava com Tia NeNê, havia 50 anos. Nunca o vi gargalhar, não dizia sandices. Falava pouco, numa simplicidade que o resumia. A esposa tinha a metade do seu tamanho e menos que isso do seu peso, mas sempre conduzira o relacionamento como uma domadora circense, entremeando ordens e afagos. Ele não reclamava.
Lembro-me quando uma de minhas irmãs apareceu grávida aos 16 anos, ele tratou de culpar a minissaia, ou seja, não foi o assanhamento que a engravidou, mas sim a maldita peça feminina que ensandece os homens.
O fato é que desde que sua debilidade física o aposentara, ajudava Tia Nenê nas tarefas do pequeno bar e como não suportava os bêbados do dia-a-dia, restara-lhe ajudá-la na cozinha. Tiveram três filhos homens. Os dois mais velhos faleceram ainda antes dos quarenta anos, solteiros, obesos e cardíacos. O caçula, irremediavelmente confuso e agressivo, fora o único a dar-lhe netos que, aliás, vinham sendo sua alegria nesta vida.
Mas os netos cresciam e tornavam-se distantes. Agora aguardava ser bisavô.
Olhei-o novamente. À beira dos oitenta, mantinha um ar dócil como se a vida, mentirosamente, lhe houvesse sido fácil. Ele me devolveu um olhar meigo. Sorri sem graça, sem decifrar se nele batia um coração mole ou duro demais.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Respeito ao Consumidor

Em 2.008, mais exatamente no dia 21 de fevereiro, aconteceu um fato cômico com uma empresa aérea brasileira.
Como eu sei exatamente a data? Porque é dia de aniversário da minha mãe. E o fato acabou me envolvendo, apesar de que eu não tinha nada a ver com o peixe, embora o animal envolvido nesta história seja outro. Inclusive, acabei quase perdendo o jantar comemorativo da mama, com direito a presença do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
O nome da companhia aérea eu não revelo nem sob tortura.

Um vôo partido de Belo Horizonte faria escala em São Paulo e seguiria para Curitiba, seu destino final.
Quando pousou em Congonhas, foi detectada uma falha técnica na aeronave, sendo necessária a troca por outro avião. Enquanto os passageiros aguardavam o reembarque, uma equipe trabalhava na transferência das bagagens.
De repente toca o rádio da gerência da companhia no aeroporto:
- Sr., temos um problema: Por alguma razão que eu desconheço, um filhotinho de poodle que foi despachado no compartimento de cargas morreu.
- Dê um jeito de trazê-lo até aqui, sem que ninguém perceba.
O auxiliar tirou o animalzinho da caixa de transporte, colocou num saco e foi até o gerente, que pesou e mediu a altura do bichinho, foi para o seu micro e mandou email geral para os funcionários.
“A Quem estiver na base de Congonhas, no horário de envio deste email
Estamos com uma urgência:
Precisamos de um filhote de Poodle que seja branco, pese aproximadamente 1,2 kg e meça por volta de 18 cm, do chão ao dorso.
Dada a urgência – estamos sujeitos a processo indenizatório – quem puder ajudar será muito útil para nossa companhia. Para evitarmos que sejam conseguidos vários animais, pedimos a quem encontrar um nas medidas acima, o favor de enviar MSN para XXXX-XXXX, antes de concluir a aquisição".
 
Eu estava me preparando para ir embora, quando li o email. Na hora, lembrei de um amigo que tem uma petshop nas proximidades e liguei:
- Paulinho, tudo bom? Você tem poodle aí para vender?
- Cara, ninguém sobrevive no meu mercado se não tiver poodle a pronta entrega.
- Só que tem de ser branco, medir 18 cm e pesar perto de 1,2 kg.
- Por quê?
- Depois explico.
Pouco mais de meia-hora depois, estava eu entregando o bichinho para o gerente.
- O que eu faço com o animal morto? – quis saber o auxiliar.
- Jogue num lixo orgânico - orientou o gerente.

Fiquei sabendo que o passageiro aprontou uma confusão daquelas no aeroporto de Curitiba. A pedido da filhinha de 5 anos, embarcara com o totó  falecido no dia do retorno das férias mineiras a fim de enterrá-lo no quintal de sua casa, no Paraná.
Quando a gerente do aeroporto de Curitiba avisou o colega de São Paulo, a empresa que faz a coleta de lixo do aeroporto já havia feito seu trabalho.
A menininha acabou ganhando um novo amiguinho, mas a companhia foi acionada na justiça.

A Quase Primeira-Dama

Em meados da década de 70, o principal empresário de uma cidade do interior resolveu lançar-se na política, candidatando-se a prefeito. O Homem possuía supermercados, lojas de automóveis, postos de gasolina, açougues, padarias, várias fazendas, além de uma usina de cana-de-açúcar. Como lançamento de sua campanha, planejou um jantar para 200 talheres e, mais que convidar, praticamente convocou a nata municipal.

Sua mulher se contrapunha totalmente à figura séria e sisuda que ele construíra ao longo da vida. Muitos achavam que Dona Lili era louca-de-pedra. Outros, que ela era gozadora por natureza, mas ninguém tinha coragem de repreendê-la, dada a importância do marido. Como presidente da Liga das Senhoras Católicas - veja só - vivia aprontando traquinagem envolvendo assuntos de igreja. Certa feita, dizem, roubou o vestido de noiva de uma de suas sobrinhas horas antes do casamento. A pobre da moça teve de casar com um vestidinho comum. Noutro casamento, fez trocarem o Laudau emprestado para saída dos noivos da igreja por uma charrete puxada por jumento.
Consta que ela judiava do padre, mandando trocar diversas vezes o vinho usado na celebração das missas por vinagre, cachaça e até Pinho Sol. A Cura Diocesana teve que acatar o pedido de transferência do padre depois que ela, tendo acesso antecipado à programação da missa matinal de um determinado domingo, levou a Bíblia que ele usaria para uma gráfica de propriedade do marido e mandou inverter a localização das páginas que ele utilizaria durante o ato litúrgico. O padre fez papel de bobo durante boa parte da missa, com todo mundo lendo uma coisa e ele falando outra.

Contam que numa certa festa de casamento, Dona Lili conseguiu esconder uma bombinha de festa junina dentro da tradicional velinha com os bonequinhos do noivo e noiva abraçados. Todos, sem exceção, em volta da grande mesa receberam pedaços de bolos no rosto e nas roupas. Mas ela foi gentil: tinha mandado fazer outro bolo igual, para que os noivos e padrinhos, embora bastante melecados, e demais convidados, pudessem comer.

Chegado o jantar da candidatura do muito provavelmente já eleito prefeito, com o clube alugado lotado, uma trupe de garçons distribuiu um tipo de petisco que ninguém pôde identificar o que era, do quê era feito. O gosto também era estranho. Para não fazer feio, todos comeram.
No que os petiscos começaram a ser recolhidos, surge Dona Lili carregando um pacote que acabara de ser lançado no mercado, produto até então desconhecido por ali. Abriu o pacote e despejou um pouco numa vasilha de petiscos vazia. Todos olharam para o rótulo do pacote e descobriram o quê acabaram de comer: “Nova Ração Canina Bonzo – O seu cão merece”.
O empresário seguiu rico, mas jamais se tornou prefeito.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Uma Exceção a Um Milhão de Regras

Tive o prazer de, aos 15 anos, conhecer o "poetinha". Foi em 79, um ano antes dele morrer. Estivemos 3 vezes juntos, sendo eu levado pelo meu irmão, amigo dele de copo. Ambos rumaram para a mesma causa-mortis: excesso de whisky. Aliás, Vinícius dizia que o whisky era o melhor amigo do homem. Era o "cachorro engarrafado".
Num dos encontros, disse a ele que, estudando a construção da letra de "Garota de Ipanema", notei surpreso que a palavra que iniciava o título não aparecia no corpo da canção. Achei que fosse por preciosismo - não repetir palavras - mas ele me informou: "Nada, foi desatenção mesmo, eu tava num pileque daqueles". E quando não estava?
Daí,  ele contou que compôs aquela canção sem saber o nome da musa. Apaixonou-se por ela no instante em que a viu passar. Pouco importava o que ela pensava, seus valores, sua família, etc, etc. Passou 20 anos apaixonado. Helô Pinheiro não o quis, apesar de reconhecer que só chegou onde chegou por conta de ter sido sua musa inspiradora.
E ele, sem qualquer modéstia, cujo significado não sabia, ainda emendou: "Só aos grandes homens é permitida a paixão à primeira vista. Estes captam tudo no simples olhar de uma mulher. Nunca acredite em regras impostas, faça as suas".
Ele morreu nú, com um copo ao lado, dentro da sua banheira, seu habitat natural. 
Era uma exceção a um milhão de regras. 

Poesia Para Quem Aprecia - Parte X - "Amor Bandido II"

Implacou
Desta vez o meu amor
Emplacou
Foi com tamanha violência
Que atordoou
Seduziu, convenceu, iludiu
Arrebatou
Me faltava resistência
Iludiu, me sujeitou
Me confundiu


Tiranizou
Dessa vez foi pra valer
Me pegou, me pegou
Não dei licença
Mas entrou, se plantou
Me dobrou, me curvei


E quando eu já tomava gosto
Enjoou, desluziu, escoou
Mal vi chegar, desencantou
Estancou, insurgiu, dissipou
E dessa vez voltou a dor
Do amor, que surgiu, que fugiu
E me calou.

Poesia Para Quem Aprecia - Parte IX - "Amor Bandido I"

Um dia achei que o mundo me pertencia
E que tudo o que eu tinha
Era o melhor que se podia ter

Então, eu conheci você
Sem ter planejado, sem imaginar
Inesperadamente
Um sabor de surpresa
Um espasmo, um espanto
Um fascínio, uma princesa
Umideceu-me os olhos
Me fez suspirar
Girou minha cabeça
Me fez suplicar
Algo que minha lógica
Não podia explicar
Que os meus longos anos
Surtaram a debutar
E tudo o que eu sabia
Evaporou-se no ar

Então derrubei minhas torres
Naveguei sem rumar
Contei aos quatro-ventos
Que eu lhe queria amar

Quis de vez sua boca
Seu perfeito sorrir
Quis de vez o seu corpo
Que me deixa tonto ao mirar
Quis de vez os seus olhos
Olhar a me consumir
Mais que nunca eu lhe quis
Mas sei que nunca terei.

Poesia Para Quem Aprecia - Parte VIII - "Problema Meu"

Diga que não me quer
Deixa eu chorar uma só vez
Se eu parti meu coração
Problema meu

Diga que nada sente
Mande que eu a esqueça
Se eu perdi a cabeça
Problema meu

Diga com todas as letras
Despreze o meu lamentar
Se eu quis me apaixonar
Problema meu

Pois, enquanto você olha longe
Eu sinto o seu cheiro tão perto
A um passo do amor mais intenso
Mais justo, mais longo, mais certo

Pois, enquanto você desconversa
Eu sigo torcendo, esperando
Que um dia, definitivamente
Eu possa ser completamente
Seu.

Poesia Para Quem Aprecia - Parte VII - "Amor Tardio"

Eu fui saído
Intrometido, mau-caráter
Pús perfume, fui poeta
Fui pateta e mal-criado
E ela nem me viu

Eu fui valente
Elouquente, comunista
Fiz barulho, fui grevista
Fiz discurso ativista
E quê da menina me ver

Eu fiz piada
Ganhei fama, dei risada
Dei vexame, dei pancada
Tomei porre, puxei cana
Mas ela nem me viu

E, quando eu já era nada
Estava fraco, pobre, murcho
Nem ouvia, nem lembrava
Nem sonhava e nem queria
Ela me amou

Poesia Para Quem Aprecia - Parte VI - "Ziguizira"

Eu hoje não tenho mais pressa
Não pago promessa, não fico pra missa,
Não quero conversa, não volto pro morro
Dispenso socorro, não ouço conselho
Recuso convite, não quito atrasado
Não perdoo pecado, refugo assistência
Perdi a paciência, que a Divina Providência
Desta vez me esqueceu

O moleque que eu queria, Deus não mandou
O aumento que hoje vinha, patrão não deu
O barraco que eu erguia, chuva levou
Meu estoque de caninha, mano bebeu
O violão que me alegrava, Mané quebrou
A saúde que eu gozava, esmoreceu
O carrinho que eu gostava, nêgo levou
O amor que eu prezava, desapareceu
O meu time que ganhava, seu juíz roubou
Minha escola na avenida, não se valeu
Meu sambinha coisa-fina, ninguém comprou
Na roda de jogatina, urubú desceu.

Poesia Para quem Aprecia - Parte V - "O Meu Garoto"

Singela, simplória
A história do meu garoto
Maroto, perfeito
Prefeito lá da favela
Apela, implora
Em último caso assalta
Não perde, não falta
Aos jogos do campeonato
Mau logro, incauto
Caiu na mão de cambista
Galante, artista
Seduz a moça carente
Falante, não mente
Omite que já tem outra
Tão macho, sarado
Tem filhos pela cidade
Que brilho, vaidade
Orgulha a comunidade
Traquina, levado
Vendeu terreno grilado
Sincero, austero
Pagou a conta da feira
Encosto, bobeira
Não viu que era nota falsa
Mais sua, mais valsa
É mestre de capoeira
Não cansa jamais da dança
Coitado, coitado
Saiu de casa algemado
Bobagem, besteira
Carece é de benzedeira.

Poesia Para Quem Aprecia - Parte IV - "A Bailarina"

Quem vê este chão assim riscado
Pelo teu sapateado
Deve imaginar que és feliz
É, olhando distraidamente
O teu valsar tão consistente
Pode-se jurar que vives bem

Quem vê a sincronia do bailado
A coreografia sem pecado
Nem remotamente crê que estás só
Mas os teus pés agoniados
Traçam paços maquilados
Num rodopio de desencanto
Num requebrar que é de pranto
Quem te aplaude não sente
Mas só está velando a tua dor

Poesia Para Quem Aprecia - Parte III - Submissão"

Como se fosse por praxe, me amou
Como se fosse deboche, sorriu
Como se eu fosse de pedra, partiu
Como se eu fosse sem brio, voltou
E como se eu fosse fantoche,
    aceitei

Como se fosse capricho, me usou
Como se fosse um serviço, exigiu
Como se eu tivesse preço, pagou
E como se eu fosse um bicho,
    fugiu

Quase não sofri, nem chorei
Quase não senti solidão
Quase não achei que falhei
Quase não perdi o rumo
   e o chão

Quase tive pena de mim
Quase impús meu jeito de ser
Quase recusei dar prazer
Quase neguei o toque da mão
E quando pensei em negar,
   disse sim

Poesia Para Quem Aprecia - Parte II - "Despedida"

Uma manhã , fim de verão
O sol brilhou querendo compensar
    teu meio-tom na voz
Dizendo adeus
Um apertar de mão
   suadas de aflição
Um triste olhar
Um soluçar
Mais uma história
   pra memória sepultar

Lembra do happy-hour?
Quanta ilusão
Brindar com whisky-sour
   a nossa união
A luz neon, um chafariz
Tudo tão bom, um som,
    um céu, eu fui feliz

Ainda vou sorrir
Ao recordar
Talvez um dia
   te dedique uma canção
Te ver partir
Me faz chorar
Sofrer assim
   faz muito mal ao coração 

Poesia Para Quem Aprecia - Parte I - "O Velho"

O tempo já me bajulou bastante
Estou na Barsa, virei nome de praça
De hoje em diante não tem bola-extra
O tempo que o tempo ainda me dá
   não presta
Que saudade, cadê o meu bonde?


Vem do Payssandú ou vem
   de onde?


O tempo tem sido condescendente
Mas com quem é que eu vou falar
   de antigamente?


Os meus amigos já partiram desta
E ninguém sabe a escalação de 30
   do Palestra


Que saudade, cadê o meu bonde?
Vem de onde? Ou será que
   não vem?

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Sandália Misteriosa

O Oliveira, que já enrolava a namorada havia 5 anos, resolveu se casar.
Como último ato na qualidade de solteiro e machão convencido, decidiu promover, na véspera do casório, uma “festinha de despedida”. Convidou a Lurdinha, colega de escritório, e que dava um mole danado (para ele e para metade dos outros rapazes da firma). No final do “evento” levou a moça para casa, mas no caminho estacionou num drive-in e transou ali mesmo.
Na manhã seguinte à lua-de-mel e, em férias do trabalho, partiu para uma viagem ao interior do estado. Foi dirigindo o carro, com a esposa recente no lado do passageiro. No banco traseiro, a sogra e o sogro.
Percorridos uns cem quilômetros, parou para reabastecer a gasolina. Quando freou, percebeu que uma sandália escorregou para baixo de suas pernas, próxima aos pedais. Lembrou da Lurdinha, ficou apavorado. Malandro, deu um jeito de pegar o calçado e escondê-lo por baixo da camisa, sem que ninguém percebesse. Parou no posto e fingiu vontade de ir ao banheiro. Lá, atirou a maldita sandália no lixo e voltou aliviado – “Ufa, essa foi por pouco!”.
Quando chegaram ao destino e preparavam-se para descer do veículo, ouviu da sogra:
- Gente, que coisa mais maluca. Tirei as sandálias para as pernas não incharem durante a viagem e um pé, simplesmente, sumiu!
Para sorte do Oliveira, o mistério nunca foi desvendado.

Nomes Bacanas

Gosto de ler nomes de gente. Às vezes pego uma lista de aprovados em vestibular e fico só degustando a leitura. Na empresa tem uns muito bacanas. Já reparei que os nomes têm tudo a ver com a geração dos pais, o que rolava na época deles no mundo das artes, do esporte e até da política. Mas tem muita gente por aí que escorrega na hora de batizar a gurizada e saem coisas hilárias, para tristeza e revolta de quem passará a vida inteira tendo que soletrar à exaustão. Noutro dia liguei para a casa de um colega de trabalho, preocupado com sua ausência no escritório.
- Bom dia, o Gilmar está?
- Quem gostaria? Um minutinho, por favor. Ô Gilvan! Telefone!
Depois de restabelecido da forte gripe, o colega conta que a mãe escolhera o nome Gilvan e mandara o marido ir registrá-lo. Na hora, o homem esqueceu qual era o nome, certo apenas de que começava com G. Com preguiça de voltar pra casa (e sem telefone), arriscou um “Gilmar”. Me revela ainda que só descobriu seu verdadeiro nome na chamada de presença, no seu primeiro dia na escola e que a família toda até hoje se recusa a aceitar a troca.
Por volta dos meus jurássicos 15 anos, comecei um namorinho com uma menina cujo nome era (ou é) Cleusa Ambrosina. Depois de uma ou duas semanas, ela fez questão de me apresentar à irmã gêmea, quando fiquei sabendo que haviam decidido entre si que eu tinha de namorar as duas. O nome da outra era (ou é) Creusa Ambrosina. Durou alguns meses e eu nunca sabia com qual das duas estava. Apenas uma letra as diferenciava e, ambas, muito lindas.
E tem muito casal que gosta de misturar seus nomes para definir o nome do neném. Uma maldade. E vão surgindo Dalvanelson, Lurdesmar, Valdirlanda, Francisdélio, Jerenildes (ele ou ela?), a lista e as possibilidades de combinação são infinitas.
No norte/nordeste, o negócio é nome importado, mas geralmente acontece um desentendimento entre quem ouve, quem pronuncia e quem escreve.
No cartório: - Bote aí o nome que minha mulher escolheu. É Washington.
- Uó...o quê?
- Shington!
- Veja aqui se é assim que se escreve, por favor. - e manda um "Uóxintom"
- Isso aí, cabra bom!

Você Conhece a Dona Filomena?

Estou no supermercado, com uma lista que vai determinando: 2 quilos disto, 3 latas daquilo, 5 saquinhos daquilo outro, e por aí segue. Paro no corredor das marcas de óleo, pego uma delas e antes de colocá-la no carrinho, ouço um comentário:
- Assim que é bom. Poder comprar qualquer óleo, sem se preocupar com o colesterol, sem problemas de fígado. Ah, a juventude... - Viro-me de lado e me deparo com uma senhorinha, ali pelos 70, olhando-me sorridente por detrás de lentes muito grossas.
- A senhora falou comigo?
- Não, meu filho, imagine. Estou apenas recordando meus tempos de moça. Sabe que eu consumia muito esse tipo de óleo? Hoje não posso mais. Na minha idade, a gente tem que se cuidar, entende?
- Claro...mas, o que é que tem este óleo? – pergunto já reparando melhor no rótulo, como se nele estivesse alguma informação que me fizesse reconsiderar usá-lo.
- Ah, esse óleo é muito ácido, meu filho. Nem se compara com aquele ali – diz apontando para um de outra marca.
– Mas você é jovem, não tem com que se preocupar ainda – balança a cabeça.
Fico parado uns segundos enquanto a vejo se afastar, empurrando seu carrinho quase vazio. Resolvo trocar o óleo pelo outro que ela, no meu lugar, escolheria. Passados alguns minutos, chego à seção de frios. Olho uns pedaços de queijo holandês e ameaço salivar. Mas 70 paus o quilo é muito. Vejo se acho um pedaço menorzinho, de 300 gramas, no máximo.
- Esse pessoal da loja é mesmo muito esperto! – É a velhinha de novo.
- Como é? – Pergunto encontrando-a exatamente atrás de mim.
- É isto mesmo! Eles colocam esse queijo importado bem aí na nossa cara, que é para nos enganar. Ali, quase escondido, mais no fundo da prateleira, - vai me indicando - tem um queijo vindo de Minas que é muito bom e está pela metade deste na sua mão.
- Sei, sei...mas sabe o que é? Eu ia pegar só um pedacinho, assim, ó.
- Muito prazer, – me estende a mão – meu nome é Filomena. Sabe que eu tenho um neto que é a sua cara? Mas fique à vontade, meu filho, leve o queijo que quiser. Você deve ter um ótimo emprego e dinheiro não deve ser problema. Eu é que sou uma enxerida mesmo. Não liga não, meu filho. Até logo.
Ela vai se afastando até virar a esquina do corredor. Eu pego os dois queijos e me bate uma dúvida mais existencial que financeira: estou sendo perdulário? Pobre metido a rico? Sei lá. Acabo ficando com o queijo mineiro, respiro fundo e continuo a seguir minha lista. Chego ao arroz. A lista manda pegar 3 quilos. Começo a pensar na velhinha. Tem umas vinte marcas na prateleira. Ah, que bom, a marca que eu sempre levo está com preço legal. Muitas outras estão mais caras. Pronto: 1, 2, 3 quilos – jogo no carrinho, giro pra esquerda e vou saindo, quando:
- Matemática é um saco, né filho? – a voz vem da direita e me dá um susto.
- A senhora...de novo?
- Pois, é, não é engraçado? Parece que nossas listas são muito parecidas. – ela dá um risinho enquanto observo que o carrinho dela continua quase vazio e não há lista nenhuma em suas mãos.
- A senhora estava falando do arroz? – arrisco inseguro.
- Veja bem, – ela ajeita os pesados óculos – pelo preço de 3 saquinhos de 1 quilo deste arroz, mais umas moedas, você leva um pacote de 5 quilos deste mesmo arroz. Ganha mais de 1 quilo, entendeu?
- Eu..não...isto é, sim. – Pego os 3 saquinhos e devolvo no lugar. Ela pega o pacote de 5 quilos e coloca no meu carrinho
– Obrigado, até logo – desta vez quem se afasta (e rápido), sou eu.
Olho pra lista. Estou quase acabando. Pego uns itens que estão faltando, com medo da velhinha estar me observando atrás de alguma pilha de latas. Estou parecendo um idiota. Confiro a lista. Só falta o macarrão. Dirijo ligeiro o carrinho até o outro corredor, já totalmente neurótico com a situação. Encosto o carrinho, ando uns metros. Escolho rapidinho um pacote de tagliarini e arremesso na direção do carrinho, quando surge, do nada, a droga da velhinha. E não é que ela agarra o macarrão no ar, feito uma goleira?
- Este fica duro e não rende nada, meu filho. Aquele ali é que é bom.
- Pois eu gosto de macarrão que não rende, tá bom? Gosto assim: de macarrão que não rende, que não tem gosto, duro e feio, entendeu, dona?
Tomei o macarrão da mão dela e fui pro caixa, irritado. Ô velha encardida! Alguns dias depois, estou na sala abrindo um vinho para o jantar, quando minha mulher surge da cozinha, me interrompendo:
- Antes de abrir o vinho, vou avisando que vamos jantar arroz e bife, porque não há quem coma a porcaria de macarrão que você comprou.

Boleiro Por Um Dia

É sábado pela noitinha e eu, solteiro, de bobeira em casa. Na TV, nada que preste. Ligo pra um amigo: Dormindo. Tento outro: Foi trabalhar. Arrisco uma amiga: Está no shopping. Resolvo ir à padaria comprar cigarro e tomar uma cerveja no balcão, o que, antes, eu achava provinciano demais. Estou ali e o assunto é futebol (sempre é), quando o balconista inventa de dizer que está me achando meio calado, cara no chão, tal e coisa, e decide que precisa me enturmar.
- Tamo sem lateral pro jogo de amanhã. ‘Bora lá?
- Tô dentro, Ceará! - Estufo o peito ao responder.
Combinado: passo na padaria às 8 da matina, vamos de lotação, o jogo vai ser às 9 e só preciso levar as chuteiras, que o resto eles arranjam. Meu Deus! Não uso chuteiras desde os 11 anos. Corro pro shopping. 300 paus? E aquela? 480? Não tem nada mais barato, não?
-Temos essa de 120, mas não é... - tenta alertar a vendedora.
- Tudo bem, - a interrompo - meu futebol não é lá aquele brinco, mesmo.
Saio da loja e encontro a Claudinha, com quem tentei falar antes. Exibo as chuteiras, ela ri. Digo que vou jogar amanhã cedo, ela gargalha. Você? Jogando futebol? De manhã? O que andou fumando? Deixo ela falando sozinha e saio fulo da vida. Vai duvidando, vai!
Preciso estar bem amanhã. Deito cedo. Rolo pra lá, pra cá. Levanto e ligo a TV. Tomo um uísque pra ajudar. Desperta mais ainda. Tomo outro, o sono não vem. Não posso exagerar, senão amanhã não acordo. Volto pra cama, não é nem meia-noite. Isso é hora de sair, não de deitar. Fecho os olhos. Penso na partida de amanhã e fico assustado. Quem disse que eu sei jogar futebol?

O rádio-relógio. Quero arremessá-lo na parede. Toca, toca, toca. Levanto capengando. 7 e meia. Tomo 400 ml de café e vou pra padaria. Nossa, 8 horas e a galera já tá no batuque e na cerveja? Chega o Ceará dizendo que tá vindo do forró. Nem dormiu. Encosta um gordinho e o Ceará o apresenta. Goleirão??? Nem metro e sessenta? Chega um senhor, arrisco uns 65 pra mais. 58 e corre como menino, garante o Ceará. E vai chegando gente sem parar. Pergunto quantos times vamos levar. Um só, o resto é torcida. Quer ver? Ele grita algo e todo mundo urra: “É campeão!”. Não entendi direito o nome do time e ele repete: “Orozão!” E a galera: “É campeão!” E nessa muvuca partimos em direção ao clube, numa caravana de vans, carros, motos, carroçaria de caminhão e o escambáu (até uns vira-latas correndo atrás). Chegamos e vamos direto para o vestiário. Banheiro de rodoviária seria elogiar o lugar. Sento (onde dá) e começo a vestir o uniforme que me dão. Acho que esqueceram de lavar esta camisa. Deixa pra lá. Vou pôr o meião. Espera aí, não tem um menor? Calço 38 e este aqui é 44. Não, não tem, vai assim mesmo. E as caneleiras? Alguém grita que é coisa de veado. As chuteiras ficaram apertadíssimas. Também, com esse meião gigante. Vai me causar bolhas. Tudo bem, vamos em frente. Não tem armário. Onde vou deixar minhas roupas? No chão? Não dá, tá todo urinado. Enrolo e levo pra deixar atrás do gol. Entramos em campo para aquecimento. Pergunto de quem é este campo. É do time que vamos enfrentar. E eles jogam bem? Faz vinte e quatro semanas que não perdem. Fico preocupado. Então os caras são bons. Que nada, se não ganham na bola, partem logo pra pancada e o jogo fica sem acabar. Credo! Dou uma panorâmica. Putz, não conheço ninguém além do Ceará. Aliás, cadê o Ceará? Dormindo no carro? Que amigón! Vamos lá: Dou uma corrida para aquecer. O joelho esquerdo estralou. Paro, massageio. Arrisco ouro pique. A batata da perna direita fisgou. Giro a cintura pra esquerda e o pescoço pra direita: Croc, Trac. Faço o movimento contrário: Trac, Croc. Os dois prum lado: Croc, Croc. Os dois pro outro: Trac, Trac. Êi! Tem um sujeito armado no gramado. Juiz? O juiz vai apitar armado? Precisa, jura? O jogo começa e lançam a bola. Acho que é pra mim. Saio na disparada, não alcanço e ela fica com o zagueiro deles. Aí eu reparo no sujeito. Sou mais ou menos da altura do umbigo dele. Não, não exageremos. Só um pouco abaixo do ombro. Ele pisa na bola e fica me encarando. Finjo que não é comigo. Alguém grita pra eu ir pra cima. Vou, mas ele me dribla, manda a bola longe e avisa: “Na próxima, vou quebrar essa tua canelinha”. Solto um risinho amarelo e me mando. 2 minutos depois, algum cretino me lança a bola de novo. Dessa vez eu domino e parto. Corro, corro, corro e...câimbra, câimbra, câimbra. Parem o jogo! Meu dedinho...subindo em cima do vizinho. Preciso tirar a chuteira. Desespero: O cadarço deu nó. Alguém ajude. Força, força, o dedinho tá se contorcendo. De repente: ‘rasssg´, a chuteira abre de fora a fora. Alívio do dedinho. Uau! Sofro pra levantar e vou mancando, uma chuteira no pé e outra na mão, pro banco dos reservas. Olho pra chuteira rasgada. É de papelão prensado, revestida por um plastiquinho imitando couro. Que sacanagem, 120 pilas! Alguém pergunta por que eu saí do jogo que começou a menos de 7 minutos e culpo a chuteira. Acho que amanhã não vou andar. Mas se a danada resistisse, eu poderia estar morto. Ah: E o jogo não acabou. No segundo tempo assisti, lá do boteco do clube, um quebra-pau dos infernos bem no meio do campo. Pena que já tinha me trocado. Não deu nem para dar uma forcinha.

A Viagem

Metade dos anos 80, eu com 20 e poucos, comecei um namoro e ali pelo quarto mês soube que a ela e família iam se mudar. Pra Onde? Pra dez quilômetros depois de onde Judas deixou as meias, cinquenta depois de ter perdido as botas. Pra lá da “tonga da mironga”, onde o vento faz a curva, bem pertinho dos quintos dos infernos. Levei um tempão para decorar o trajeto a ponto de poder ir e voltar sozinho. Para o meu guia de ruas, que nem era muito velho, o lugar nem existia. Eu levava mais de hora até a casa dela e olha que o trânsito naquela época ainda fluía bem. Difícil era quando ela queria vir à minha casa. Eu ia buscá-la e depois levá-la, para alegria do Toninho do posto Shell. A coisa engrossou quando precisei vender meu carro e ficar uns tempos a pé. “Como faço para ir de ônibus até sua casa? Deixa ver se eu entendi: pego o metrô, sentido Itaquera, desço lá e pego o ônibus da linha X. Vou até o ponto final e tomo outra linha, a Y, de novo até o ponto final. Ando onze quadras, viro à esquerda, dois semáforos adiante tem um viaduto. Fala mais devagar que eu estou anotando. Certo, então atravesso sobre ele, dobro à direita, e finalmente pego o...o trem? Caramba!!! Não tem um outro jeito, não?” Tinha, sim, mas um lance de pegar balsa não me animou. Não nos telefonamos mais, mas sábado chegou e acabei me encorajando. Banho tomado, roupa de sair, perfuminho...e lá fui eu. Em vinte minutos de metrô, eu já estava em Itaquera. Subo no ônibus, parado no terminal. Deu até pra escolher lugar na janelinha. E vamos nessa! Não, não vamos. O ônibus não sai. Demora, demora. E vai enchendo, enchendo. Senta-se uma moça do meu lado, neném no colo. Finalmente partimos. O neném chora, ela põe ele sentado. Ele chora, ela põe ele deitado. Ele chora, ela põe ele em pé. Viro a cara pra janela, o neném puxa o meu cabelo. A moça bate na mãozinha dele, ele chora. Fico na minha, quase nem doeu. De repente o neném tira a chupeta e esfrega na minha calça. Ela se desculpa e tenta me limpar com um paninho. Espalha mais ainda a baba. Não foi nada, pode deixar. O neném estrala um tapa na cara dela. Ainda bem que não foi na minha. Ela dá uma puta bronca e ele chora. Ufa! Ela se levanta e faz sinal para descer. Senta-se uma velhinha, bíblia na mão:
- O senhor já aceitou Jesus? Não respondo. Finjo que dormi subitamente. Ela começa a recitar um salmo. Metade do ônibus vai respondendo: “Amém, Jesus! Amém, Jesus!”. Abro um pouquinho só os olhos e percebo que ela está me encarando.
- Amém, Jesus??? – A pergunta dela é incisiva e ameaçadora.
- Amém, Jesus! – Respondo já assustado com todo mundo me olhando. O ônibus para. Salve, chegamos! Desço no terminal e localizo o outro ônibus. Minha calça bege ta com uma mancha azul na coxa. Azul e azeda. Que será que o neném comeu? Subo no ônibus que parte rápido, meio vazio. Mas na primeira parada entram uns 30 e, na segunda, mais que isso. Meu vizinho de assento agora é um adolescente cabeludo todo melado de suor. Futebol de várzea. Fico encolhido pra não encostar nele. Ele tira a chuteira e a meia do pé esquerdo. Credo, que fedor! Mostra o dedão sangrando prum amigo. Diz que vai revidar. Chacoalha o pé e respinga sangue na minha camisa. Ralho com o garoto, que se desculpa coçando sempre a cabeça. Começo a reparar que tem umas coisinhas se mexendo nos cabelos dele. Levanto depressa, dou lugar pro amigo dele e vou pro fundo do ônibus. Não cabe mais ninguém. Nem preciso segurar nas curvas e freadas. Estou em pé e totalmente prensado. Graças a Deus, o ponto final. Faz duas horas que saí de casa. Parece muito mais. Faço o percurso a pé que ela tinha me orientado. Só não avisou que era uma subida só. Ali está o tal viaduto. Agora falta pouco. Começa a garoar. Uma chuvinha. É, uma chuva. Não, é um toró. Putz, melhor correr. Corro, escorrego, caio sentado. Pelo menos ninguém viu. Levanto. Chego à estação ferroviária. Consigo o último lugar pra sentar no vagão. Sinto a bunda molhada. Foi o tombo. Droga, não, não foi, o assento é que tá todo vomitado. Levanto, passo a mão na calça. Urgh! Cachaça! O jeito é ficar em pé. Catso, estou fedendo. Tá todo mundo me olhando feio. Melhor sentar. O trem para e acho outro assento. Só mais uma estação. Um senhor para na minha frente, segurando uma sacola plástica numa mão e na outra uma...galinha?! É permitido entrar com animais nos trens? Gente! A galinha tá de ponta-cabeça, com os pés amarrados, vivinha da silva e me encarando! O trem começa a andar e o homem a se desequilibrar. Penso em ceder meu lugar, mas o cheiro está mais discreto comigo sentado. O trem balança, o velho balança e galinha se debate e solta pena pra todo lado. Ele vai acabar caindo com essa galinha em cima de mim. Entrou uma penugem na minha narina. Espirro, espirro. Resolvo oferecer-lhe ajuda, apontando a sacola. Ele aceita e a deixo no colo. Nossa, estou fedendo a peixe. Peixe? Levanto a sacola e percebo que vazou alguma coisa no meu colo. Tento espiar dentro dela.
- Pintado! Bicho brigão! – gaba-se o velho ao notar minha curiosidade.
- Sua sacola está vazando – minha voz já é um lamento.
- Não tem importância. É pra descongelar mesmo...
Minha viagem de ida termina e meu estado é deplorável. Quando chego à portaria do prédio onde minha namorada mora, o porteiro avisa: “Não tem ninguém no 31. Foi todo mundo pra igreja”.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

O Chumbinho da Vila do Sapo

Toda cidade pequena, como a minha, tem seus personagens folclóricos. Gente que acaba virando lenda, e normalmente se perpetua no imaginário local, atravessando gerações. O Chumbinho é um caso desses.


Negro, miúdo, cara de bom menino, sorriso franco, aquele tipo que a gente mal conhece e logo diz: “nesse eu posso confiar”. Conheci o Chumbinho como todo mundo conheceu: no campinho de futebol da Vila do Sapo, numa beirada baixa e alagadiça da cidade, daí o nome. No final dos anos 60, criança era criada solta, sem esse negócio de ir pra escola com 2 anos de idade, maternal 1, maternal 2, jardim 1, jardim 2, pré 1, pré 2. A gente só ia pra escola no ano de completar 7. Antes era rua mesmo, a melhor das escolas, aliás. O tal campinho era disputadíssimo. De manhã, era toda a garotada que estudava à tarde, mais os que ainda não tinham a idade mínima. De tarde, todas as classes da manhã, mais os mesmos pequenininhos. E o Chumbinho estava sempre lá. Era uma espécie de síndico do pedaço. Como ele podia ser tão esperto, se nunca tinha estudado? Uns diziam que ele tinha 9, outros juravam que era 14. Ninguém sabia, ele não contava. Ele tinha um bigodinho ralinho, assim, como penugem de filhote de anu-preto. Aquilo botava o maior respeito na galera. Ele separava a molecada, escalava os times, apitava os jogos e não roubava nunca. Ninguém discutia quando ele marcava falta ou pênalti. Dia de feriado a gente passava o dia inteiro lá, até a mãe ir buscar xingando. Ele era o primeiro a chegar e o último a ir embora, se é que ia. O Kico, que era mais velho que a maioria, dizia que o Chumbinho morava no campinho, que não tinha mãe, nem pai, nem casa. Ninguém acreditava no Kico, que nunca teve coragem de enfrentar o Chumbinho e só falava por trás. Mas era verdade que quando ia anoitecendo, as mães chegando, não dava mais para distinguir o Chumbinho no meio do terreno escuro. Eu ficava olhando pros dentões dele, branquinhos, branquinhos, lá de longe, dando tchau. Não sei ao certo quando deixei de freqüentar a Vila do Sapo. Talvez ao arranjar a primeira namorada, ou quando minha família se mudou do interior, sei lá. Alguns anos depois, já moço, fui a uma festa de casamento de um primo e ao chegar, presenciei meu irmão, 14 anos mais velho que eu, numa rodinha dizendo que jamais iria esquecer de um amigo de infância dele, o Chumbinho, da Vila do Sapo. No mesmo instante foi interrompido pelo tio Dudu, já aposentado: “que é isso, rapaz, o Chumbinho foi do meu tempo, de antes da Guerra, você nem era nascido, tá maluco?”.

Tal Pai, Tais Filhos

“Criança bonita e meiga / Para uns, anjo celeste /
Para outros, uma peste / Que emporcalha de manteiga /
As calças que a gente veste...” – Antigo verso popular.


Dez da manhã, dia de semana, toca a campainha. Minha mãe fecha a torneira, enxuga as mãos no pano-de-prato estrategicamente amarrado na cintura e corre atender:
- Bom dia, dona Annita, – diz seu Jorge, dono do mercadinho de secos & molhados da rua de baixo - seu marido está? Eu preciso que ele acerte a conta, porque faz três meses que ele não paga nada e assim não dá mais para fazer fiado.
- Sinto muito, mas o José saiu cedo para procurar trabalho. Assim que ele voltar...
Nisso, eu, com 4 anos, ouvindo a conversa lá da cozinha, corro até a porta e a interrompo, sem pestanejar:
- Ô mãe! O papai tá sim. A senhora acabou de levar café pra ele, lá na cama...

...


Tenho 6 anos, estou brincando na calçada em frente de casa, quando chegam meus tios Nelson e Augusta, numa vemaguete (carro da extinta fábrica Vemag), vindos da cidade de Bauru. São meus padrinhos e eu adoro os presentes que me dão no natal e no aniversário. Descem do carro e eu pulo no colo da madrinha, para abraçá-la.
- Viemos visitar vocês – ela diz – vamos almoçar e ficar um tempão juntos. Seu pai quase não leva você para nos visitar em Bauru, né?
- É que toda vez que nós vamos, ele volta com uma caganeira daquelas, tia. Ele acha que é a sua comida...

...


Meu filho Pedro, de 5 anos, me liga no escritório, perguntando se eu posso levá-lo à casa do Gustavo, amiguinho do colégio.
- Não dá, filho, o papai está trabalhando.
- Mas vai ser de noite, na hora da novela.
- Hum...sei, é aniversário dele?
- Não, papai, a gente combinou um campeonato de pôker.

...


Chego em casa todo sorridente. Meus dois filhos estão entretidos com o videogame.
- Meninos, corram ver uma surpresa! – grito-lhes da porta da rua.
Ponho cada um de um lado do corpo e aponto para o carro semi-novo que acabei de comprar, quando o caçula, de 4 anos, resmunga desolado:
- Ah, pai. Por que você não comprou uma Porshe?

...

Sou despertado por um chorinho, vindo do quarto dos meus filhos. Olho para o rádio-relógio: quatro e meia da matina. Levanto tropeçando em tudo, entro no quarto deles, acendo o abajur e observo Pedro, 6 anos, sentado na cama, choramingando.
- Filhinho, o que foi? Teve pesadelo?
- Não...
- Tá com dor em algum lugar? – Tomo-lhe a temperatura da testa. – Fala pro papai.
- Tinha uma mão gigante segurando o meu braço...choraminga.
Na cama ao lado o irmãozinho, menor ainda, dorme profundamente. Tento tranquilizálo do óbvio pesadelo:
- Era o papai, que veio ajeitar você na cama. Dorme agora, dorme.
- Mas o braço era gigante e peludo.
- Era a manga do pijama de lã do papai. Não foi nada, pode dormir.
- Mas tinha uma bocona enorme – ele insistiu.
- Era a boca do papai, quando eu cheguei bem pertinho para dar um beijo no seu rosto. Vamos, pode dormir.
Foi quando ele abriu de vez os olhos e disparou:
- Ô pai, essa conversa de Lobo Mau querendo enganar a Chapeuzinho eu já conheço, tá?

...


Estou trancado no banheiro quando toca o telefone, na sala. Percebo que Victor, meu filho de 6 anos, atende e é alguém querendo falar comigo, fico só ouvindo:
- Meu pai tá, sim, mas agora ele não pode atender, porque tá no banheiro fazendo cocô. Eu escutei um monte de pum.
Saio o mais rápido possível do banheiro, e ele:
- Paiê, é para você ligar para a moça do Itaú.

...

Meu filho mais velho, então com 5 anos, me chama:
- Papai, guarda esse quadro. - apontou para uma tela pregada na parede.
- Filhinho, é só mais um dos quadros que o papai pintou. Por quê você quer que eu o retire? Você o acha feio?
- Tenho medo desse velho sentado aí, me olhando. Sonho com ele...
E foi assim que "meu" Ernest Hemingway foi para dentro de um armário, onde ficou por longos 6 anos, até  o menino perder o pavor do homem que o perseguia com o olhar feito em óleo sobre tela.

. . .


Termino de entrevistar uma candidata a empregada doméstica e estou prestes a combinar a data de início, quando Pedro, 7 anos, passa pela sala e dispara em alto e bom tom:
- Pai, não é melhor contratar uma mais magrinha, não?

...


Meus 2 filhos estudam em uma ótima escola da capital paulistana. Ótima mesmo. E é curioso como promove excursões, quase semanalmente. Nada que me custe mais que 80 – 100 paus (cada filho, é claro) por programa. Vem sempre aquele bilhetinho informando de uma “fantástica e imperdível experiência, que muito agregará ao desenvolvimento cultural e emocional etc, etc”. Só neste ano, teve Circo do Beto Carreiro, Parque da Mônica, Museu do Ipiranga, Playcenter, Autódromo de Interlagos; Parque da Água Branca, Horto Florestal, Museu do Índio, Pinacoteca do Estado, Planetário, Fazendinha Não-sei-das-Quantas, e por aí, vai.
Aliás, dessa tal Fazendinha, Pedro, de 7, voltou encantado, todo tagarela:
- Papai, você não imagina de onde sai o ovo da galinha! – e mais:
- Sabe o que eu vi? Um pé de guaraná!
- E tava carregado, filho?
Não...não tinha nenhuma garrafinha.

...


Numa madrugada gelada de julho, levanto e vou ao quarto dos meninos, ver se estão cobertos. Quando vou ajeitar o mais velho, que se descobrira, percebo que ele começa a acordar e vai logo dizendo:
- Ah, pai, esqueci de avisar: amanhã vai ter merenda comunitária na classe. Cada um leva uma coisa diferente e todo mundo reparte. A professora mandou eu levar uma torta de ameixa.

...


Pedro vai completar 10 anos no domingo e pede para que eu faça um churrasco em casa para comemorar. Concordo e aviso à família. Na antevéspera ele me liga no escritório e pergunta se pode convidar o Ferrari, que eu não me lembro de conhecer.
– “Ai, meu Deus, o Ferrari, lá do Colégio, né, pai!” - responde irritado.
– Tá bom, filho.
No domingo, toca a campainha: é o Lucas. Toca de novo: é o Michel. Depois é a vez do Felipe, do Tiago, do Gabriel, do Mateus, do Henrique, do Tomás, do Charles, mais um que não conheço, mais outro e outro e outro...
Chamo o Pedro num canto e começo a soltar as cachorras, afinal, eu não havia comprado carne para tanta molecada: "Filho, você pediu pra trazer só o tal do Ferrari!" – e ele:
- Mas, pai, Ferrari é o nome do nosso time.

...


Victor, de 9, está na sala fazendo lição de casa. Pedro, de 10, está na cozinha fuçando a geladeira e eu acabo de me estirar no sofá, após um dia especialmente cansativo no escritório.
- Pai, - diz Victor – a professora mandou levar um folheto de supermercado pra aula de amanhã. Onde tem?
Levanto resmungando e vou revirar o revisteiro. Nada de folhetos. Abro a estante da sala, remexo; necas. Armários e gaveteiros da cozinha; hum-hum. Lavanderia e quartinho da empregada; coisa alguma. “Garagem!” – penso – Procuro daqui, procuro dali, nadinha.
Volto meia-hora depois, amarrotado e mau-humorado para a sala. “Segunda-feira foi uma receita culinária típica da Amazônia; ontem: trazer fotos antigas do seu bairro (como se eu guardasse esse tipo de coisa); e hoje me vem com essa...”.
- Achou, papai?
- Achei, nada! Faz o seguinte: diz à sua pro-fe-sso-ra, que o escravo de plantão, aqui, sumiu! – Falei alto e fui para o banheiro.
Nisso, Pedro chega até a sala e questiona:
- Por que o papai ficou bravo, Victor?
- Sei lá, - respondeu confuso – Parece que sumiu um tal dum cravo de plutão. E eu nem sei o que é isso.

Mirinho

O Argemiro é metido a poeta e compositor. Pra ganhar a vida, toca nuns barzinhos da Vila Madalena, de quarta em diante e promete que um dia arrebenta no mercado. Noite dessas, encontro o Argemiro enchendo a cara, como se alguma amada lhe tivesse dado o pé.
- Pô, cara, cê num sabe o que me aconteceu.– diz choramingando – Imagine que ontem de madrugada eu acordei para ir ao banheiro e, sem mais, nem menos, surgiu uma melodia na minha cabeça. Uma verdadeira obra-prima, de fazer o Chico (Buarque) morrer de inveja. Coisa pra me tirar dessa vida de mané.
- Ué, e por que esse bode todo?
- Pô, cara, voltei pra cama todo feliz. Mas hoje, quando levantei, cadê de eu lembrar de um único acorde...


Mas o Argemiro geralmente tem bom humor. Outro dia, sem ter assunto, perguntei quem ele levaria para uma ilha deserta, e ele:
- A Juliana Paes e um fotógrafo da Caras. Porque deve ser uma merda pegar uma mulher daquelas e ninguém acreditar depois.


E ele tem razão quando diz que este é um mundo de aparências. Afinal, a gente pode até não ser o que os outros acham que a gente é, mas de que adianta? Mês passado estávamos conversando durante o intervalo da apresentação dele, quando se aproxima um sujeito meio esquisito que reconhece o Argemiro na hora. O cara o abraça, mete-lhe um beijo na bochecha e diz pro “Mirinho” que a proposta continua “eternamente de pé”. Quando o maluco se afasta, tento saber que catso tinha sido aquilo.
- Ah, não liga, não. O Betinho estudou comigo no primário e no ginásio. Não sei por quê ele enfiou na cabeça que eu sou gay. Desde pequeno ele acha que eu sou gay. Já cansei de dizer que não, mas ele não acredita. Uma vez dei uma de machão pra ver se ele dava sossego, mas só piorou. Quando me vê com mulher, diz que é disfarce. E toda vez vem com a mesma conversa. Eu não ligo mais.
- E qual é a dele?
- Sei lá. Mas ele jura que um dia ainda vai me pegar...

Numa 6a. feira, ali pelas 6 da tarde, estava o Argemiro numa rodinha de happy-hour com quatro amigos dele, também músicos. Eram colegas de profissão e de cruz, mas não trabalhavam juntos. O Filé é baterista dum grupo de reggae. Já o negócio do Tatá é o cavaquinho e há meses vem estudando chorinho. O Buzú é pagodeiro e o Altair é clarinetista da banda do corpo de bombeiros. De repente, toca o celular dele e do outro lado é um promotor de uma casa noturna de Campos do Jordão (cidade do interior paulista, fria pra burro). Depois que ele desliga, os outros ficam sabendo que o Sardinha, (segundo ele, um amigão), acabara de oferecer um cachê “da hora” para animar uma festa. Quando? Hoje, hoje mesmo, às dez da noite. Onde? Lá em Campos. E por que não ligou antes? O grupo que ia tocar cancelou de última hora. “Cara, se aqui ta quinze graus, lá deve estar nevando” – disse o Filé, já se encolhendo. “E aquela estrada, então? À noite, com chuva e neblina no trecho de serra, é suicídio” – Alardeou Buzú.
Mas o Argemiro estava - como os demais - numa pindaíba daquelas (pra variar), e começou a matutar em voz alta: “Eu canto e toco violão. O Tatá apóia com o cavaco. O Buzú conhece baixo. O Filé vai pra batera e o Altair...o Altair...pô, Altair, clarinete é complicado de encaixar, hein?” E o Altair:
- Meu velho, tu vai ter que dar um jeito. O único que tem carro, aqui, sou eu!


Soube que eles foram, que chegaram atrasados, e mesmo sem ensaiar, parece que fizeram bonito, gripe à parte.

Um livro para Vó Lica

Minha avó era mesmo uma figura. E afirmo sem medo de ofender, menos porque ela é falecida, mais porque sei que ela não se importaria. Na verdade, ela era mãe da mãe do meu pai, minha bisavó. Consta que se casou aos 13 e antes dos 20 já tinha enviuvado. Ficou uns trinta anos tentando arranjar um novo marido, em vão. Dizem que quando um rapaz começou a frequentar sua casa, interessado na filha, ela não entendeu a situação e ficou uns dois meses se perfumando à tôa. Não sei explicar clinicamente, mas por volta dos 50 anos de idade ela ficou completamente senil e assim permaneceu até morrer, com 90. Foram quatro décadas de convívio de uma família, cada vez mais numerosa, com uma matriarca simpática, bem humorada (porém teimosa) e pra lá de doidona. A caduquice era tamanha, que a impedia de reconhecer os mais próximos. Netos e bisnetos, então, tinham que ser apresentados tantas e quantas vezes a visitassem: “sou a Ana, filha de seu neto José, filho da Maricota” – e ela: “quem é Maricota?”. Aliás, no dia em que minha avó Maricota era velada no caixão, a bisa aproximou-se conduzida por uma neta e disparou: “Gente! Liguem para a Maricota para avisar que a Maricota morreu”.
E suas “fugidas”, então? Às vezes, voltava pra casa escoltada por algum conhecido, depois de ter saído pelada pela rua, com uma calçola enfiada na cabeça feito chapéu. Noutras, desaparecia, para desespero da família e da pajem. Certa vez, com mais de 80, foi alcançada a mais de dez quilômetros de casa e reagiu: “Mas que surpresa encontrá-lo! Que faz por aqui?”.
Eu adorava visitar minha bisavó. Era divertidíssimo. Depois de fazê-la entender quem eu era, vinham os agrados. Ela fumava escondido (supunha, a despeito de pedir cigarro para todo mundo). Então me levava até o quarto dela, fechava a porta e me oferecia um cigarro amarrotado, que ela desenfurnava do guarda-roupa, de dentro de um pote de pó-de-arroz. Era impossível fumar aquilo, a gente só fingia. E para acompanhar, servia uma xícara de café que ela mantinha num bule no criado-mudo; café este certamente preparado muitos dias antes. Numa dessas visitas, dei-lhe um livro qualquer. Ela olhou, folheou e me devolveu, meio sem graça, dizendo que não tinha muito tempo livre para leituras. Eu insisti, sugerindo que, então, ela o lesse durante as idas ao banheiro, e ela: “Tenho hemorróidas, não posso me demorar naquela posição. Você ainda não conhece bunda de velha, mas um dia, vai ver!”.
Quando ela se foi causou comoção. Um lindo livro de fábulas, naquele dia, se fechou.

Pamonha de Piracicaba

Domingo, pra mim, é dia de dar carinho pra patroa. Ali pelas 11 da manhã, depois do cafezinho. Pra quem é casado, trabalha de segunda à sexta até as 8 da noite (depois vem a novela e depois dela o sono, para minha mulher, bem entendido) e reserva o sábado para o supermercado, lavar o carro, consertar alguma coisa que os meninos quebraram, gastar dinheiro no shopping e visitar a família, não necessariamente nesta ordem, só resta mesmo o domingo. Não dá pra ser depois do almoço, que almoço de domingo pesa até na segunda, nem à noite, que tem os programas de futebol na TV.
Pois é: chega aquele horário, os meninos acordaram e estão na sala grudados no videogame. Estamos na cozinha. Saio de fininho e vou pro quarto. Minha mulher enrola um pouco e faz a mesma coisa. Não podemos ir ao mesmo tempo, porque os sacaninhas percebem e aí, babau.
Muito bem: porta trancada, buraco da fechadura devidamente vedado e partimos pras preliminares. De repente, o mais velho bate à porta:
- Paiê, é a vovó no telefone! – grita de lá.
- Hunf...diz que eu ligo depois! – berro daqui.
Meio minuto depois, ele volta:
- Paiê, ela só quer saber se a gente topa ir almoçar na casa dela!
- Tá bom! Tá bom!
Meio minuto depois, de novo:
- Paiê!
- Quié, catso?
- Ela quer saber se você prefere molho branco ou vermelho no macarrão!
- Ai, Deus. – resmungo – Tanto faz! – grito.
- Molho branco! – opina minha mulher, já não achando de todo ruim a ligação.
Voltamos para o namoro. A coisa esquenta e quando partimos para a ação, propriamente dita...
- Pamonha! Pamonha de Piracicaba! – Grita estridente um alto-falante bem debaixo da janela. Tento me concentrar no que estou fazendo. Tento não ouvir...
- Docinha, pamonha! É o puro suco do milho! Pamonha fresquinha de Piracicaba!
- Não acredito que o cara estacionou embaixo da nossa janela. – vou diminuindo o movimento.
- Não para, meu bem. – ela tenta me animar, mas aí tropeça feio: Põe toda essa pamon...
- Saco, saco, saco!!! – Droga de Piracicaba! – Cocô de Piracicaba! Catso de Piracicaba! - berro em 200 decibéis.
Ela acaba rindo, comigo sentando na beira da cama, puto da vida, vendo o meu, digamos, equipamento, regredir.
Levanto, visto a calça de pijama e vou até à sala fumar um cigarro. O mais novo pergunta se eu vou comprar pamonha. Se não fosse meu filho, mandava praquele lugar.
Volto pro quarto. Minha mulher tá de bruços, cochilando. Como ela consegue? Para o namoro no meio - um cara se esgoelando lá fora – e, dorme? Ai que vontade de apagar a bituca no traseiro dela.
Começamos a discutir. Ela me acalma. Me beija, faz carinho. Estamos retomando e ouço a campainha. Não me desconcentro. Agora não paro mais...
- Paiê! – Agora é o mais novo.
- Mas será o Benedito?!
- Não, pai, é o vizinho pedindo para puxar um pouco o carro porque está atrapalhando a garagem dele.
- Deixa que eu vou - Diz ela já saindo da posição.
Cinco minutos e um cigarro depois, ela volta. Respiro fundo e parto outra vez ao amor, mas não antes de jurar a pele do moleque que vier bater novamente à porta do quarto. Agora estamos indo bem, quase lá e...é a vez do celular vibrar e tocar Brasileirinho em cima do criado-mudo.
- Não vou atender!
- Mas bem, e se for algum problema? – Ela argumenta já pegando e me estendendo o aparelho.
Olho no identificador. É meu chefe. Melhor atender...
- Já acordou? – Pergunta ele e, antes que eu possa dizer alguma coisa, emenda: - Sabe onde eu fui ontem à noite? - E mais rápido ainda começa a me narrar a interminável noitada dele.
Vinte minutos depois ele desliga. Começo a imaginar o que falta vir pela frente. Minha esposa tenta me reanimar. Sofro, mas acabo conseguindo. Estou quase pronto quando sinto uma enorme queimada na nuca. Dou um pulo da cama e ainda acerto uma joelhada na barriga dela. Eu berro, ela berra. No travesseiro, uma abelha agoniza, atraída por um maldito cheiro de pamonha.

Mas, Medeiros...

Estou no restaurante com o Medeiros e percebo que ele não tira os olhos da mesa ao lado, ocupada por um casal de, digamos, gordinhos. A uma certa altura, ele não se contém:
- Deus que me perdoe, mas gente gorda é dose. Fico me perguntando se o ser humano foi concebido, estabeleceu-se e evoluiu, para ser disforme assim. Juro que não quero reparar, mas quem pode ficar impassível vendo esses baleias comendo? Não é um ato pacífico. Não pode ser. Veja como a refeição é atacada a golpes de faca e garfo, como se ela ameaçasse evaporar ou fugir. O mundo sendo assolado por fome e esses dois aí, querendo tudo só pra eles. Comem, comem, comem. Tem gente que levaria dias pra dar cabo de tanta comida. Coisa mais egoísta! O garçom tentou passar atrás deles e não conseguiu, você viu? Teve que dar a volta pela outra mesa. Essa gente ocupa espaço dos outros o tempo todo, seja na calçada, no elevador, no corredor do supermercado, na fila do banco e até aqui no restaurante. Você já se sentou ao lado de um, na classe econômica de um avião, ou num banco de ônibus? Já compartilhou o assento traseiro de um carro durante uma viagem de quatro horas? I-nes-que-cí-vel, meu caro!
- Mas, Medeiros...
- Não tem mas, nem meio-mas. E aquele barulhinho infernal, de roçar as coxas quando anda? - Risg-rusg, risg-rusg - De matar! Aliás, dane-se quem tiver que carregar o caixão dum defunto gordo feito um desses aí. Outra coisa: todo mundo tem problemas, menos gente gorda. Gordo sorri pra tudo, com aquele jeito de bonachão: tudo bem...tudo zen. O mundo pode estar se acabando que ele não estressa, vive irritantemente feliz. E sempre suando em bicas, faça frio ou calor, parecendo que vai se desmanchar bem na nossa frente.
- Mas, Medeiros...
- Não me venha com mas, não. Agora, sabe o que eu não tolero, mesmo? Aquelas histórias de dieta. Gordo sempre aparece com uma receita infalível e, óbvio, nunca funciona. Ontem só comia casca de arroz com broto de bambu; hoje é uma tal raiz não-sei-das-quantas misturada com uns cereais importados do Uzbesquistão. Aí, emagrece trezentos gramas e vibra, vibra! Amanhã recupera o que tinha perdido e ganha mais uns três quilos; e assim vai.
- Mas, Medeiros...
- Que “mas, Medeiros”, que nada! Gordo tem é mania de dar pisão no pé dos outros e dizer que foi sem querer. Uma ova! E esbarrão? Me diga aí: quantos esbarrões de gordo você já levou? Aí, vem você e é capaz de me acusar de desumano, preconceituoso, desalmado, ignorante. Que ninguém é gordo porque quer, que a gente deve ver como um problema médico etc, etc. Mas olha os dois ali tomando sorvete. Aquilo não é uma taça, é um balde. Pode até ser diet, light, o escambáu. Mas que tem uns dois quilos ali dentro, isso tem. Olha lá como eles devoram o sorvete. Eles não estão tomando sorvete, eles estão copulando com o sorvete. Olha a cara deles. A expressão de prazer. Garanto que não fazem essa cara nem quando estão transando. Ali sim o mundo deles se fecha e sininhos tocam: é só entre cada um e o seu sorvete.
- Mas, Medeiros...
- Isso tudo sem falar que gordo não se manca mesmo. Já viu como gordo adora pular do trampolim da piscina do clube; experimentar a bicicletinha do sobrinho mais novo; montar em pônei para tirar fotografia e bancar o Tarzan, se pendurando em cordinha amarrada em galho de árvore? E dançar sobre mesa de baile de formatura, então? Um inglório desafio às leis da física. Depois aparecem todos nas videocassetadas do Faustão.
E quando, finalmente, penso que vou poder completar a frase:
- Mas, Medeiros, não estou te entendendo, cara, afinal...
- Afinal, o quê? Olha lá os dois: pedem café sem açúcar e colocam três colheres de chantilly. Gordo não se enxerga, mesmo!
Pagamos a conta e saímos mudos, eu e o Medeiros, que mede 1 e 70 e diz que pesa menos de 100 quilos, quando todo mundo sabe que ele passa dos 130.