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segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Um livro para Vó Lica

Minha avó era mesmo uma figura. E afirmo sem medo de ofender, menos porque ela é falecida, mais porque sei que ela não se importaria. Na verdade, ela era mãe da mãe do meu pai, minha bisavó. Consta que se casou aos 13 e antes dos 20 já tinha enviuvado. Ficou uns trinta anos tentando arranjar um novo marido, em vão. Dizem que quando um rapaz começou a frequentar sua casa, interessado na filha, ela não entendeu a situação e ficou uns dois meses se perfumando à tôa. Não sei explicar clinicamente, mas por volta dos 50 anos de idade ela ficou completamente senil e assim permaneceu até morrer, com 90. Foram quatro décadas de convívio de uma família, cada vez mais numerosa, com uma matriarca simpática, bem humorada (porém teimosa) e pra lá de doidona. A caduquice era tamanha, que a impedia de reconhecer os mais próximos. Netos e bisnetos, então, tinham que ser apresentados tantas e quantas vezes a visitassem: “sou a Ana, filha de seu neto José, filho da Maricota” – e ela: “quem é Maricota?”. Aliás, no dia em que minha avó Maricota era velada no caixão, a bisa aproximou-se conduzida por uma neta e disparou: “Gente! Liguem para a Maricota para avisar que a Maricota morreu”.
E suas “fugidas”, então? Às vezes, voltava pra casa escoltada por algum conhecido, depois de ter saído pelada pela rua, com uma calçola enfiada na cabeça feito chapéu. Noutras, desaparecia, para desespero da família e da pajem. Certa vez, com mais de 80, foi alcançada a mais de dez quilômetros de casa e reagiu: “Mas que surpresa encontrá-lo! Que faz por aqui?”.
Eu adorava visitar minha bisavó. Era divertidíssimo. Depois de fazê-la entender quem eu era, vinham os agrados. Ela fumava escondido (supunha, a despeito de pedir cigarro para todo mundo). Então me levava até o quarto dela, fechava a porta e me oferecia um cigarro amarrotado, que ela desenfurnava do guarda-roupa, de dentro de um pote de pó-de-arroz. Era impossível fumar aquilo, a gente só fingia. E para acompanhar, servia uma xícara de café que ela mantinha num bule no criado-mudo; café este certamente preparado muitos dias antes. Numa dessas visitas, dei-lhe um livro qualquer. Ela olhou, folheou e me devolveu, meio sem graça, dizendo que não tinha muito tempo livre para leituras. Eu insisti, sugerindo que, então, ela o lesse durante as idas ao banheiro, e ela: “Tenho hemorróidas, não posso me demorar naquela posição. Você ainda não conhece bunda de velha, mas um dia, vai ver!”.
Quando ela se foi causou comoção. Um lindo livro de fábulas, naquele dia, se fechou.