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quarta-feira, 25 de agosto de 2010

A Viagem

Metade dos anos 80, eu com 20 e poucos, comecei um namoro e ali pelo quarto mês soube que a ela e família iam se mudar. Pra Onde? Pra dez quilômetros depois de onde Judas deixou as meias, cinquenta depois de ter perdido as botas. Pra lá da “tonga da mironga”, onde o vento faz a curva, bem pertinho dos quintos dos infernos. Levei um tempão para decorar o trajeto a ponto de poder ir e voltar sozinho. Para o meu guia de ruas, que nem era muito velho, o lugar nem existia. Eu levava mais de hora até a casa dela e olha que o trânsito naquela época ainda fluía bem. Difícil era quando ela queria vir à minha casa. Eu ia buscá-la e depois levá-la, para alegria do Toninho do posto Shell. A coisa engrossou quando precisei vender meu carro e ficar uns tempos a pé. “Como faço para ir de ônibus até sua casa? Deixa ver se eu entendi: pego o metrô, sentido Itaquera, desço lá e pego o ônibus da linha X. Vou até o ponto final e tomo outra linha, a Y, de novo até o ponto final. Ando onze quadras, viro à esquerda, dois semáforos adiante tem um viaduto. Fala mais devagar que eu estou anotando. Certo, então atravesso sobre ele, dobro à direita, e finalmente pego o...o trem? Caramba!!! Não tem um outro jeito, não?” Tinha, sim, mas um lance de pegar balsa não me animou. Não nos telefonamos mais, mas sábado chegou e acabei me encorajando. Banho tomado, roupa de sair, perfuminho...e lá fui eu. Em vinte minutos de metrô, eu já estava em Itaquera. Subo no ônibus, parado no terminal. Deu até pra escolher lugar na janelinha. E vamos nessa! Não, não vamos. O ônibus não sai. Demora, demora. E vai enchendo, enchendo. Senta-se uma moça do meu lado, neném no colo. Finalmente partimos. O neném chora, ela põe ele sentado. Ele chora, ela põe ele deitado. Ele chora, ela põe ele em pé. Viro a cara pra janela, o neném puxa o meu cabelo. A moça bate na mãozinha dele, ele chora. Fico na minha, quase nem doeu. De repente o neném tira a chupeta e esfrega na minha calça. Ela se desculpa e tenta me limpar com um paninho. Espalha mais ainda a baba. Não foi nada, pode deixar. O neném estrala um tapa na cara dela. Ainda bem que não foi na minha. Ela dá uma puta bronca e ele chora. Ufa! Ela se levanta e faz sinal para descer. Senta-se uma velhinha, bíblia na mão:
- O senhor já aceitou Jesus? Não respondo. Finjo que dormi subitamente. Ela começa a recitar um salmo. Metade do ônibus vai respondendo: “Amém, Jesus! Amém, Jesus!”. Abro um pouquinho só os olhos e percebo que ela está me encarando.
- Amém, Jesus??? – A pergunta dela é incisiva e ameaçadora.
- Amém, Jesus! – Respondo já assustado com todo mundo me olhando. O ônibus para. Salve, chegamos! Desço no terminal e localizo o outro ônibus. Minha calça bege ta com uma mancha azul na coxa. Azul e azeda. Que será que o neném comeu? Subo no ônibus que parte rápido, meio vazio. Mas na primeira parada entram uns 30 e, na segunda, mais que isso. Meu vizinho de assento agora é um adolescente cabeludo todo melado de suor. Futebol de várzea. Fico encolhido pra não encostar nele. Ele tira a chuteira e a meia do pé esquerdo. Credo, que fedor! Mostra o dedão sangrando prum amigo. Diz que vai revidar. Chacoalha o pé e respinga sangue na minha camisa. Ralho com o garoto, que se desculpa coçando sempre a cabeça. Começo a reparar que tem umas coisinhas se mexendo nos cabelos dele. Levanto depressa, dou lugar pro amigo dele e vou pro fundo do ônibus. Não cabe mais ninguém. Nem preciso segurar nas curvas e freadas. Estou em pé e totalmente prensado. Graças a Deus, o ponto final. Faz duas horas que saí de casa. Parece muito mais. Faço o percurso a pé que ela tinha me orientado. Só não avisou que era uma subida só. Ali está o tal viaduto. Agora falta pouco. Começa a garoar. Uma chuvinha. É, uma chuva. Não, é um toró. Putz, melhor correr. Corro, escorrego, caio sentado. Pelo menos ninguém viu. Levanto. Chego à estação ferroviária. Consigo o último lugar pra sentar no vagão. Sinto a bunda molhada. Foi o tombo. Droga, não, não foi, o assento é que tá todo vomitado. Levanto, passo a mão na calça. Urgh! Cachaça! O jeito é ficar em pé. Catso, estou fedendo. Tá todo mundo me olhando feio. Melhor sentar. O trem para e acho outro assento. Só mais uma estação. Um senhor para na minha frente, segurando uma sacola plástica numa mão e na outra uma...galinha?! É permitido entrar com animais nos trens? Gente! A galinha tá de ponta-cabeça, com os pés amarrados, vivinha da silva e me encarando! O trem começa a andar e o homem a se desequilibrar. Penso em ceder meu lugar, mas o cheiro está mais discreto comigo sentado. O trem balança, o velho balança e galinha se debate e solta pena pra todo lado. Ele vai acabar caindo com essa galinha em cima de mim. Entrou uma penugem na minha narina. Espirro, espirro. Resolvo oferecer-lhe ajuda, apontando a sacola. Ele aceita e a deixo no colo. Nossa, estou fedendo a peixe. Peixe? Levanto a sacola e percebo que vazou alguma coisa no meu colo. Tento espiar dentro dela.
- Pintado! Bicho brigão! – gaba-se o velho ao notar minha curiosidade.
- Sua sacola está vazando – minha voz já é um lamento.
- Não tem importância. É pra descongelar mesmo...
Minha viagem de ida termina e meu estado é deplorável. Quando chego à portaria do prédio onde minha namorada mora, o porteiro avisa: “Não tem ninguém no 31. Foi todo mundo pra igreja”.